Gustavo, um Brasileiro.

texto retirado do jornal Zero Hora, 10/02/07

Dia desses, ouvi uma brincadeira. Era mais ou menos assim: "Ah, é, o Guga perdeu? E qual a novidade disso?". Fiquei chateado. Imediatamente, me veio uma lembrança da Copa de 1998, na França. Gustavo Kuerten estava em Paris para tentar o bi em Roland Garros, vencido por ele mesmo no ano anterior em uma final inesquecível contra o espanhol Sergi Bruguera. Guga já era o "Pelé do Tênis, que sabe fazer tudo como ninguém", conforme observou Gianni Clerici, respeitado jornalista especializado em tênis do La Republica, da Itália. Quatro anos depois, em 2001, Guga se consagraria tricampeão em Roland Garros, já como número 1 do mundo.
Mas voltemos a 1998.

Guga já era Guga quando visitou Lésigny, onde estava concentrada a Seleção. Era amigo de Denílson. E Denílson era o Perdigão daquela Copa. Fazia piadas, tirava onda com todo mundo. Pessoas como Denílson e Perdigão fazem amizades com naturalidade espantosa. Denílson conheceu Guga meses antes e, quando soube que estariam os dois em Paris por aqueles dias, o convidou para visitar o Chateau de Grand Romaine, castelo convertido em casa do Brasil na Copa. Guga chegou lá, brincou de tocar pandeiro, fez a alegria dos fotógrafos e, claro, concedeu entrevistas. Já tinha o que precisava para Zero Hora, mas o Diário Catarinense queria um material ampliado, e eu esperava minha vez de bater um papo mais longo, de cantinho, quem sabe com uma ou outra frase exclusiva, mesmo no meio daquele mundaréu de gente, sabe como é repórter. Guga conversava com um radialista do interior de Goiás, mas tinha prometido que eu seria o próximo. Então, chegou o Tino Marcos, da Globo.

O Tino é um cara educadíssimo, gente boa mesmo. Vê dois gaúchos conversando e sai logo perguntando se tem lugar na confraria do chimarrão. Só que o Tino recém havia chegado aonde estavam Guga e os jogadores. TV é uma correria só. Tira o equipamento da van, faz entrevista, põe tudo na van de novo, vai gerar a imagem, sai correndo para a próxima pauta. Então, quando o Tino avistou o Guga, entrou de sopetão, nem deu tempo de olhar para os lados e tomar pé da situação. Queria sair logo gravando.

- Ô Guga, pode ser?

- Güenta aí, Tino. Deixa eu terminar aqui primeiro (com o radialista). Depois tem o parceiro ali da terrinha (eu, que ali estava pela RBS).

Deixei o Tino "furar a fila". Ele seria rápido, eu poderia conversar com o Guga logo depois, como realmente o fiz. Nunca mais esqueci esse episódio. Para ele, não importava se a entrevista na Globo seria vista por milhões de pessoas, enquanto nem uma fração disso o ouviria na rádio do interior. Poderia até ter acelerado a conversa para terminá-la logo, mas nem isso. Atendeu ao colega de Goiás até o seu entrevistador declarar encerrado o assunto. Respondeu até se, algum dia, havia escutado o berrante. Ali, o que valia era tratar a todos igualmente, respeitar quem chegou primeiro. Um gesto simples, mas cheio de significado em tempos de individualismo e intolerância.

Por isso fiquei chateado quando ouvi a brincadeira após a derrota no challenger de Florianópolis, esta semana. É mais ou menos nessa toada que vão as análises sobre sua tentativa de retorno às quadras após complicadas cirurgias no quadril. Quando ganhava todas era o ídolo, o exemplo, a manchete patriota. Agora que perde jogos na sua luta para voltar a fazer o que mais gosta, nada disso importa mais. É só descrença com pitadas de desrespeito. Tudo bem que esporte é momento e resultado, mas não dá para revogar o passado.

Quantos foram tri em Roland Garros? Quantos lideraram 17 semanas seguidas a Corrida dos Campeões? Quantos um dia venceram Roger Federer? E, o mais importante: quantos agiriam com aquele radialista lá do interior de Goiás como fez Guga? Não interessa se ele voltará a ser o campeão do passado. Vale, agora, o mérito de voltar, simplesmente. Além do mais, é arriscado duvidar de heróis. Chegou a hora de o Brasil acreditar em Gustavo Kuerten como ele sempre acreditou no Brasil.

Porque Guga, como bom brasileiro, não vai desistir.